Surdo ou Distraído – Será que o meu filho ouve bem?
Surdo ou Distraído
A sensação de perda auditiva é um motivo frequente de consulta de Otorrinolariongologia (ORL) na criança.
No entanto não é raro as crianças serem referenciadas por atrasos do desenvolvimento da linguagem ou pela sensação de que são distraídas. Todas estas queixas determinam que seja feita uma avaliação otorrinolaringológica e audiométrica.
A “distração”, em particular, é desafiante na medida em que pode ser devida a outras doenças ou alterações comportamentais a serem estudadas, sempre a par da exclusão de perda auditiva: a distinção entre perda auditiva ou alterações comportamentais da esfera da atenção é fundamental.
Perda Auditiva
A perda auditiva, medicamente denominada hipoacusia, é uma condição que afecta 1 a 3 de cada 1000 recém-nascidos, e essa percentagem aumenta nos recém-nascidos de grupos de risco (prematuros, ventilados, gravidez de risco, infecções maternas especificas no período gestacional, etc). Por esta razão desde há mais de 10 anos está implementado em Portugal o Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU), que permite identificar as crianças que nascem com algum grau de perda auditiva (surdez congénita), por forma a iniciar precocemente a sua reabilitação.
A surdez infantil não se esgota, no entanto, nesses casos e um grau variável de perda auditiva pode ser adquirido de forma transitória ou permanente, ao longo da infância e adolescência.
Perante criança que não reage aos sons do meio ambiente, que tarda em “palrar”, que tem um atraso do desenvolvimento da linguagem ou que fixa a face do interlocutor para melhor perceber a fala, suspeitamos facilmente de hipoacusia.
No entanto existe um conjunto de crianças que não reage de imediato quando as chamamos, se alheia ou pede frequentemente para repetirmos o que dissemos, aparentando distração. A distinção entre estas duas situações é essencial, porque grande parte dos “distraídos” têm realmente algum grau de perda auditiva, que não sendo identificada precocemente, pode provocar sequelas.
Possíveis Causas
As otites médias agudas frequentes e a otite seromucosa, geralmente em contexto de infecções respiratórias altas (com obstrução nasal, secrecção nasal, voz nasalada, respiração noturna ruidosa, eventual apneia do sono) são das causas mais frequentes de perda auditiva transitória na criança, por atingimento do ouvido médio (caixa do tímpano e mastoide).
Se estas doenças se complicarem de formas mais permanentes de otite, as chamadas otites crónicas (simples, atelectásica, colesteatomatosa), pode instalar-se surdez de condução mais duradoura, de grau variável, geralmente passível de melhoria com tratamento médico e/ ou cirúrgico.
Existe outro conjunto de doenças, muito menos frequentes na infância, mas capazes de provocar perda auditiva menos reversível: são doenças que afectam o ouvido interno (a cóclea), provocando surdez sensorioneural. Podem estar relacionadas com infecções como meningite purulenta ou algumas infecções virais (dentre as quais o sarampo e a parotidite), com traumatismos cranianos ou com alterações genéticas não diagnosticadas, e que se manifestam ao longo da primeira década de vida, com instalação de perda auditiva sem qualquer outra queixa associada, ou com alterações subtis de outros órgãos e sistemas que uma vez identificadas permitem fazer um diagnostico específico.
Existem abordagens terapêuticas individualizadas para cada uma das situações referidas, que dependem do tipo e grau de perda auditiva.
A classificação da perda auditiva resulta da avaliação audiométrica, que tem particularidades específicas nas crianças, como será fácil de perceber.
Avaliação
Se é fácil contar com a colaboração de um adulto sem afecção cognitiva na realização destes exames, o mesmo não é verdade na criança pequena. Por essa razão existem exames adaptados a cada grupo etário, e por vezes, para ter um diagnóstico preciso, é necessário realizar mais do que uma avaliação.
O RANU utiliza as otoemissões acústicas, exame automático, independente da colaboração do doente, e que nos diz apenas se o doente tem uma audição normal ou não. Caso haja alguma perda auditiva, este exame não nos elucida sobre o seu grau, e terá de ser complementado pela realização de potenciais evocados auditivos do tronco cerebral (ERA), exame que nas crianças tem de ser feito durante sono natural ou com sedação.
A audiometria comportamental, que engloba vários exames adaptados a diferentes idades, permite uma avaliação diferente, que nos dá tanto melhor informação quando maior o grau de colaboração da criança. Nas crianças com normal desenvolvimento, a partir dos 4/5 anos é possível fazer um audiograma tonal simples (ATS). O ATS é o exame que melhor permite documentar a audição do examinado, possibilitando estabelecer limiares auditivos, que são a menor intensidade sonora que o ouvido do doente é capaz de captar em cada frequência sonora.
Quando existem problemas de discriminação, ou seja, sempre que há a sensação de haver disparidade entre a capacidade de ouvir e a capacidade de distinguir ou perceber palavras, é realizado o audiograma vocal, também só possível em crianças de idade superior a 3 / 4 anos, que já fizeram aquisição da linguagem, percebendo por isso as palavras que terão de repetir ou identificar.
O timpanograma complementa todos os exames atrás referidos: é um exame que não nos dá informação sobre a capacidade auditiva da criança, mas que nos ajuda a identificar e caracterizar patologia da caixa do tímpano (ouvido médio). É um exame de muito fácil realização e totalmente independente da colaboração do doente, permitindo a sua utilização em qualquer idade. Este exame ajuda a diagnosticar duas das patologias otológicas mais frequentes na criança, causadoras de hipoacusia: a otite seromucosa e a otite média aguda.
Otite Serosa
Em relação à otite serosa convém aqui realçar que é uma doença que pode ser quase assintomática, não causando dor ou alterações do estado geral da criança, mas tão somente uma perda auditiva que pode ser ligeira e por isso difícil de identificar. Por vezes a observação do ouvido também não permite um diagnóstico imediato. A gravidade da otite serosa decorre de 2 factores:
-A hipoacusia que provoca, apesar de ligeira, tem impacto na capacidade auditiva da criança, e consequentemente na aquisição / desenvolvimento da linguagem e, se mantida, provoca alteração das características neurológicas da audição (alteração do Processamento Auditivo Central/ PAC).
-A otite serosa crónica, não diagnosticada nem tratada, provoca alterações progressivas da estrutura do ouvido, transformando a perda auditiva, habitualmente reversível, numa perda auditiva permanente.
Uma última nota: caso a criança não revele alterações dos exames auditivos, e ainda assim haja a sensação de que não ouve adequadamente ou tem dificuldade em discriminar, e caso a isto se associe dificuldade de aprendizagem, é imperioso fazer a avaliação do Processamento Auditivo Central (PAC) e avaliação em consulta de Psicologia ou Consulta de Desenvolvimento.
A avaliação do PAC é um exame demorado, que requer concentração e muita colaboração do examinado, e que por isso só se realiza em crianças de idade superior a 6/7anos.
CONCLUSÃO
Sempre que exista a menor dúvida em relação à audição, a criança deve ser avaliada pelo seu médico assistente e se necessário em consulta de otorrinolaringologia. Existem muitos exames complementares de diagnóstico, adaptados às diferentes idades, que permitem a quantificação da audição e um diagnóstico atempado, que previne a instalação de complicações duma perda auditiva prolongada ou irreversível.
Inês Soares da Cunha
Otorrinolaringologista
Clínica Crescendo
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